olhos nos olhos 

textos de 
josé manuel teixeira da silva









André Kertész - Washington Square, New York -  
1954

 Talvez o mundo seja apenas isto. Talvez me estejam a ver em alguma parte da terra, alguém siga o mesmo caminho de passos que desaparecem em sulcos de neve acumulada. E assim percorra os trilhos elegantes do espesso esquecimento, cercas e sinais, bancos ocupados pelo demasiado branco, caligrafia das árvores despidas. Talvez o mundo aqui nasça, talvez seja o último brilho, talvez os vultos se cruzem ou caiam em si, no gelo visível das paisagens.

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Sergio Larrain - Valparaíso, Chile - 
1957


A infância, a toda a volta do quarto da mãe, é Valparaíso, um cais que distribui estranha gente pelas ruas, estivadores, marinheiros, santas e mulheres selvagens, chegadas e partidas. É uma cidade que infinitamente se sobe e desce. Ao fim das tardes, alguém liberta das trapeiras gaivotas muito altas. Também existem guindastes e brinquedos mecânicos, caixinhas de música em que bate, como num sonho repetido, o coração. Está tudo edificado em excessiva luz e nas simétricas sombras, caves onde germina o bolor das horas que tombaram, mirantes para descobrir o desenho do movimento das praças. As garrafas passam de mão em mão, é puro leite ou denso veneno.

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 Manuel Álvarez Bravo - Lucy - 
1980

Reparem como estou vestida pelo sol mexicano. Fui desta vez o ser degolado, espantaram-me o cuidado do golpe e a ternura implacável. Só me resta devolver-te os olhos desejosos de mim. Toma-os com a melhor dedicatória: assim dançarei em redor dos salões sombrios a que ficaste condenado. Não quebres agora o silêncio, deixa-me despida de mim própria. Um triângulo de ouro escurecido, correspondências interrompidas, pupilas, mamilos, coisas visíveis que também espreitam o mundo.

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Jeanloup Sieff - Istanbul - 
1959


Um barqueiro sombrio? Recorde-se a inclinação de certas horas ou o embalo com que chegam as cidades, aparecem, desaparecem com os avanços das vagas, o vogar atento dos peixes. Saltaremos de barca em barca, até alcançarmos os cais flutuantes, balançam imenso logo que neles assentamos os pés. As torres sobem até ao céu, mergulham com as casas em atropelado precipício. Um pouco mais tarde, esqueceremos a viagem na ondulação dos mercados, ruas e becos. Aí naufragaremos para sempre.

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Bernard Plossu - Le Sommeil

Há uma vibração no círculo simples das coisas que te pertencem, quando deixas que o ar se desloque sensível e assim adormeça. Se pareces desatenta é só porque tudo habitas. Poderíamos falar da qualidade musical da luz que iluminas ou do modo rigoroso como abandonas os lençóis que vemos viverem contigo. Alguém tentará escolher uma palavra, rubato, quer dizer, chegamos um pouco tarde ou algo cedo, e isso será apenas um nome para a vida

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Paul den Hollander - série Moments in Time
1972-1979

Como se o lugar fosse desenhado linha a linha, e depois quadrado a quadrado, e de sombra em sombra, e depois para que, finalmente, aparecesses. És tu quem nos leva pela mão. Um cenário em sobressalto, quando te debruças para o mar. Apenas o mar, inteiro, desdobrado

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Jean-Luc Chapin - Retours à Hugo -
Villequier, 2005

Sabei que o meu nome é apenas Adèle H. , que o tempo se faz de iniciais e coisas apagadas, do esquecimento que as flores reabrem. Sabei que o meu nome é apenas paixão, que a luz entranha o leito de mármore e as chuvas regressam para que os dias e as noites inteiros se percam.

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Inês d'Orey - série Porto Interior -
hotel dom henrique #1 - 2010

A cidade é um brinquedo perigoso. Deixa-nos recuar, depois selar os olhos, e fica o trânsito cuidadoso e sereno. Permite a paixão da ordem, simetrias que doem e coisas que dispomos de viés, para que se afastem uma vez mais. Só depois nos oferece o abismo e os últimos brilhos no vidro, um pouco fosco, do olhar.

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Bert Stern - The Last Sitting. Marilyn Monroe
1962

Com um fio de sangue recuso esta imagem. Mostra apenas a difícil perfeição da vida: pele demasiado delicada, pronta para o tacto e inocentes pisaduras; as partes que pendem com a gravidade do tempo; tonalidades fixando os olhares que se alimentam de mim. A vida e um fio de sangue. Pormenores que, daqui a pouco (digamos, seis semanas), se esvaem para o mais dentro de si

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Abelardo Morell- Manhattan View Looking West in Empty Room. série Camera Obscura - 1996

Como abrir e fechar os olhos em quartos preenchidos de muitas portas. Povoar a grande escuridão dos bairros com as luzes que trazemos dos nossos baldios mais distantes. Talvez o mundo, o desdobrado mundo, se possa, enfim, aquietar no sossego rumoroso de uma casa

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